Por: Samuel Ribeiro dos Santos Neto | Bolsista Mídia Ciência FAPESP/LABJOR

Fonte: Jornal Unicamp On

No Brasil, toda empresa com 100 funcionários ou mais é obrigada por lei a ter de 2% a 5% dos seus cargos preenchidos por pessoas com deficiência. É o que prevê o artigo 93 da Lei nº 8.213/91, também conhecida como Lei de Cotas, que apesar de seus quase 30 anos ainda não é plenamente cumprida. Em se tratando de mercado de trabalho, as pessoas com deficiência ainda enfrentam muitos desafios.

“Existe um desconhecimento em relação à legislação. É algo que deveria ser instituído nos cursos de graduação. As pessoas precisam conhecer a lei para aumentar a adesão das empresas”, explica a enfermeira Maiza Claudia Vilela Hipólito, que recentemente defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Educação Física (FEF), orientada pelo professor Gustavo Luis Gutierrez.

Intitulada Inclusão de pessoas com deficiência em empresas do setor industrial, a pesquisa analisou as visões de 19 gestores e profissionais de recursos humanos em três unidades de uma empresa de grande porte que atua na área de mineração e metalurgia. A ideia foi mapear práticas e políticas adotadas pelos empregadores e também as questões relativas ao acesso e à permanência de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Um mercado em transformação

Para Gustavo Luis Gutierrez, professor da FEF e orientador da tese, as cotas têm diminuído o preconceito e trazido maior aceitação social para as pessoas com deficiência. “A legislação faz parte de um movimento amplo, que envolve também o esporte paralímpico e as lutas por acessibilidade. Há todo um esforço pelo resgate da cidadania e dos direitos dessas pessoas”, afirma.

Atualmente, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei 6159, submetido pelo Governo Federal ao Congresso Nacional em novembro de 2019 e que visa mudanças na Lei de Cotas e no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Entre outras medidas, o projeto autoriza que as empresas substituam a contratação de PCDs pelo recolhimento mensal de dois salários-mínimos por cargo não preenchido, o que tem gerado críticas por parte de representantes e organizações dos movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência. Em carta publicada em janeiro deste ano e assinada por dezenas de entidades, o alerta é de que o PL pode retirar direitos e diminuir as chances de contratação de PCDs no mercado formal.

Segundo Gutierrez, pesquisas como a realizada por Maiza são importantes porque mostram aspectos do começo do funcionamento das leis de inclusão e de uma geração de pessoas com deficiência que só recentemente entrou no mercado de trabalho. “Estamos estudando, escrevendo e registrando um processo enquanto ele está acontecendo”, explica o professor.

Os dados da inclusão no Brasil

O direito ao trabalho está previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei nº 13.146/2015, e também faz parte da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (PCD), da qual o Brasil é signatário. Mas a situação do mercado de trabalho para as PCDs ainda está longe do ideal. “Há poucas pessoas com deficiência trabalhando e menos ainda com emprego formal”, afirma Maiza.

Segundo nota técnica do IBGE de 2018 referente ao Censo 2010, 6,7% da população brasileira (cerca de 12,7 milhões de pessoas) possuíam algum tipo de deficiência. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 apontam que havia cerca de 486 mil pessoas com deficiência com empregos formais naquele ano, correspondendo a cerca de 1% das ocupações no mercado formal.

Apesar de ainda ser pouco, o número tem crescido nos últimos anos: eram cerca de 418 mil PCDs formalmente empregadas em 2016 e 441 mil em 2017. O crescimento está relacionado com o aumento da fiscalização dos órgãos públicos sobre as empresas, mas também com uma melhor definição das regras da Lei de Cotas a partir de 2015, com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Desconhecimento ainda é o maior desafio

Os resultados da pesquisa realizada por Maiza Hipólito mostraram que ainda existe desconhecimento por parte desses gestores e profissionais de RH em relação à legislação. Além disso, a inserção de pessoas com deficiência no setor é vista por eles como um dificultador. “A maioria relata que elas devem ser inseridas na área administrativa”, conta Maiza. Os principais fatores que contribuem para isso são as barreiras arquitetônicas (a falta de adaptação dos espaços físicos, muito comum em sedes industriais mais antigas) e as próprias características de risco do setor, como a presença de altas temperaturas ou o uso de maquinário pesado. A pesquisa também constatou que há escassez de treinamento para os profissionais em relação à inserção e manutenção das pessoas com deficiência na empresa.

Já em relação à qualificação profissional das PCDs, Maiza conta que muitos gestores a relatam como sendo precária, o que pode ser explicado pela pouca inserção dessa população no mercado de trabalho. “O próprio empregador pode promover essa qualificação”, ressalta. “A empresa que pesquisei tem essa preocupação, mesmo porque é difícil encontrar uma PCD qualificada no setor de metalurgia”.

Apesar dos problemas identificados, a empresa cumpre a legislação vigente e possui um comitê de diversidade que, entre outras ações, busca promover adaptações no espaço físico para melhorar a inserção de pessoas com deficiência.

Para a pesquisadora, uma grande dificuldade desse tipo de estudo é o acesso aos ambientes laborais para fazer a coleta de dados. “Durante o mestrado entrei em contato com várias empresas para fazer a tese de doutorado, mas elas não dão abertura. Foi extremamente difícil conseguir essa empresa”, conta. “Fica subentendido que alguns empregadores não cumprem as cotas e têm receio que a pesquisadora denuncie”.

Os limites da lei

Apesar da importância da Lei de Cotas para a garantia de direitos, ainda existem desafios para que a inclusão aconteça em todos os contextos no mundo do trabalho. Um deles é a própria variedade do mercado, que vai de supermercados e escritórios até fábricas e unidades de mineração como as visitadas por Maiza. A pouca especificidade da legislação também é um problema: a Lei de Cotas não define a quantidade de pessoas a serem contratadas em relação ao tipo de deficiência (auditiva, visual, física, intelectual) ou à sua gravidade.

“A maioria das empresas opta por pessoas com deficiência leve. É mais fácil adaptar uma pessoa com amputação de um dedo, por exemplo, do que alguém com deficiência intelectual”, explica a pesquisadora.

Outro ponto levantado é que não basta apenas contratar a pessoa com deficiência para que aconteça a inclusão. É necessário qualificá-la e adaptar seu trabalho para que seu potencial seja aproveitado de maneira produtiva. “Contratar uma pessoa com síndrome de Down e deixá-la na recepção para dar bom dia, boa tarde e boa noite não é a adaptação que nós buscamos”, afirma Maiza.

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